Sobre a Ciência da Sustentabilidade a partir de uma pequena revisão de literatura

Idalina Dias Sardinha

SOCIUS-CSG, ISEG, Universidade de Lisboa

8 de outubro de 2021

No debate sobre o desenvolvimento sustentável identifica-se uma inquietação sobre qual a contribuição da ciência para a construção de comunidades ambiental e socialmente sustentáveis (Strigl 2003). A ciência poderá ter um papel importante no progresso e melhoria das políticas e práticas sustentáveis, mas o seu impacto depende muito da disciplina científica, da forma como se configura e como interage com a sociedade e a política.
Vários autores e realidades mostram que as Ciências Socias e Humanas (CSH) são cruciais tanto para o conhecimento como para o desenvolvimento. A sua abordagem participativa, característica estruturante, serve a procura de mitigação consensual dos problemas globais e contribui para o corpo metodológico da ciência da sustentabilidade. O surgimento da ciência da sustentabilidade vem ao encontro de múltiplos chamamentos: o da integração das CSH nas políticas públicas para uma sociedade mais inclusiva; o da compreensão de processos socioeconómicos e ambientais complexos para uma sociedade mais sustentável; e o da urgência da minimização e resolução dos problemas globais com que a sociedade e o planeta se confrontam.
A ciência da sustentabilidade tem como objetivo compreender a configuração interativa entre a natureza e a sociedade (Kates et al. 2001; Turner et al. 2003), e a dinâmica associada aos respetivos sistemas (Clark and Dickson 2003), com o fim de valorizar a sua utilidade para todas as comunidades de interessados. O objetivo final é o de contribuir para que os sistemas sociedade-natureza, integrados a diferentes escalas, atinjam uma dinâmica sustentável, isto é, capaz de satisfazer as necessidades da sociedade e sustentar o sistema de suporte de vida do planeta. É uma ciência que deve contribuir para a resolução dos problemas globais.
Como se desenvolve a ciência da sustentabilidade? Os cientistas aplicam comumente ferramentas analítico-descritivas, por vezes através de aplicações empíricas, permitindo compreender as partes que interagem e as lacunas de informação das vulnerabilidades dos sistemas sociedade-ambiente e procuram soluções para esses problemas, num modo mono e/ou interdisciplinar. Por exemplo, no primeiro caso, a ecologia ou a economia, e no segundo caso, a economia ecológica. No entanto, a experiência das últimas décadas tem demonstrado que, sendo estes problemas de ordem complexa e urgente, esta abordagem ainda não é suficiente. Esta ciência precisa de se desenvolver e evoluir partindo do modo analítico-descritivo, progredindo para uma abordagem transformacional (Wiek et al. 2012).
Esta abordagem transformacional analisa como se faz a transição e a transformação para a sustentabilidade dos sistemas, incorporando os conhecimentos fora da academia e lidando com diferentes valores e interesses políticos, ou seja, aplicando um processo transdisciplinar para promover a implementação de soluções viáveis. Podemos assim considerar que o processo de investigação transdisciplinar, na ciência da sustentabilidade, evolve e beneficia da própria valorização da CSH.
A visão transdisciplinar é uma apropriação positiva e proactiva dos modos da valorização das CSH e prossegue o que há muito a epistemologia afirma: que há limites ao conhecimento/ epistemológico, dada a diversidade e a complexidade dos sistemas sociedade-ambiente. Não sendo nova a abordagem investigação-ação nas CSH, na ciência da sustentabilidade é parte integrante e obriga a procurar soluções integradas a diferentes escalas e domínios, garantindo no mínimo o estabelecimento de estratégias relacionadas com as compreensões científicas, bem como com o contexto político e económico estabelecido.

Segundo Scholz (2011), o processo transdisciplinar cumpre os seguintes requisitos: foca problemas socialmente relevantes; permite aprendizagem mútua entre investigadores de diferentes disciplinas, assim como entre atores de fora da academia; e visa a criação de conhecimento orientado para a solução, e socialmente robusto e transferível para a prática, podendo mesmo servir funções diferentes, incluindo capacitação e legitimação (ou seja, corresponsabilização).

Este trabalho, segundo Lang et al. (2012), deve acontecer em 3 fases: primeiro, enquadram-se de forma colaborativa o problema e a equipa de projeto; segundo, coproduzem-se conhecimentos e soluções transferíveis; e terceiro, (re)integram-se e aplicam-se os conhecimentos produzidos na ciência e na prática social.

Este processo, necessário à ciência da sustentabilidade, vem ao encontro do processo de participação e democratização, como resposta à ausência da voz dos cidadãos e valores ambientais nos processos de tomada de decisões (Eckersley 2004), criando condições para o envolvimento das pessoas nas decisões que afetam as suas vidas e o seu meio.

De forma detalhada, a abordagem transformacional que deve ocorrer sugere que esta tem de ir para além das questões de “como os sistemas sociedade-ambiente evoluíram (passado), funcionam atualmente (presente), e podem continuar a desenvolver-se (futuro)” (Wiek et al. 2012). A transformação deve abordar os dois fluxos de questões de investigação: em primeiro lugar, a questão normativa, sobre como iriam funcionar e estruturar-se no futuro os sistemas sociedade-ambiente (locais e/ou globais), estando em conformidade com uma variedade de metas e objetivos suportados em valores, e.g., o equilíbrio entre as necessidades socioeconómicas e as capacidades ambientais – sustentabilidade dos sistemas (Swart et al. 2004; Schultz et al. 2008); e, em segundo, as questões estratégicas e operacionais sobre quais são as direções de transição viáveis para os sistemas sociedade-ambiente, e que estratégias encontram soluções para os problemas em causa (Olsson et al. 2008; Loorbach 2010; Jerneck et al. 2011).
Na realidade, apesar de ser árduo o estabelecimento dos valores consensuais e a definição das estratégias de operacionalização, o repto maior é ser capaz de passar da análise descritiva e rigorosa dos sistemas complexos para as transformações efetivas. Acresce que a abordagem transdisciplinar utilizada, que obriga a contextualização, é confrontada também ela com desafios operacionais, já que precisa de mais tempo e financiamento adequados. Mais, sabemos que a participação pública e a transdisciplinaridade não são garantias de soluções sustentáveis e por isso abordagens potencialmente contestadas. Tal como Goodin (1992) in Jerneck et al. (2011 p.77) argumentou “defender a democracia é defender procedimentos, defender a ecologia é defender resultados”.

Em síntese, o pressuposto fundamental e final da ciência da sustentabilidade é que a compreensão dos sistemas em análise, incluindo os processos sociais e biofísicos passados e presentes, usos ambientais locais, forças políticas e económicas, preocupações das partes interessadas e respostas previstas, etc. permita a redução da vulnerabilidade dos sistemas a longo prazo (Ostrom et al. 2007; Matson 2009). A forma de realizar o potencial da ciência da sustentabilidade é esta centrar-se nas soluções, criar contextos de investigação colaborativos transdisciplinares e reduzir as barreiras institucionais.

Assim, a investigação transformacional para a sustentabilidade prevê um papel diferente para os cientistas; estes não analisam ”apenas” questões de sustentabilidade, mas, em vez disso, são chamados a imergir nos processos de decisão que estão incrustados nos processos de transição da sociedade, co-construindo conhecimento científico robusto e socialmente eficaz (Wiek 2007; Scholz 2011; Talwar et al. 2011; Lang et al. 2012).

O desenvolvimento de projetos de ciência da sustentabilidade pode ser um caminho árduo, produzindo dilemas, antagonismos e conflitos societais (Kates et al. 2001), assim como é limitada a sua influência na decisão política (Spangenberg 2011), reduzindo a potencialidade dos seus resultados e obrigando a procurar soluções integradas a diferentes escalas e domínios, mas, contudo, garantindo no mínimo o estabelecimento de “estratégias que estão íntima e mutuamente relacionadas com as compreensões científicas, bem como com o contexto político e económico em que a ciência é estabelecida” (Jerneck et al. 2011 p.76).

O que é novo nesta ciência da sustentabilidade, é afirmar que, dadas as evidências da complexidade e dos necessários consensos, o caminho para a sustentabilidade dos sistemas precisa de uma ciência, de um conhecimento integrador e holístico, em que os parceiros de investigação-ação se coresponsabilizem pelos modos e pelas soluções. Em que as ciências exatas e as CSH completam-se e, no todo, a investigação dos sistemas sociedade-ambiente surge como em zona de fronteira, cooperando com a política e com as comunidades para que os problemas possam ser minimizados e alguns resolvidos em tempo útil.

É uma ciência que paulatinamente irá cimentar as condições conceptuais bem como os meios para alcançar “o seu e o de todos” conhecimento científico, justificando o seu reconhecimento institucional a nível internacional e académico.

Neste enquadramento evolutivo, mas também de consolidação científica, que obriga a transformações e a concretizações que minimizem os problemas societais, precisará evoluir-se e desenvolver-se a educação primária a terciária, desenhada de acordo com uma compreensão inter- e transdisciplinar. Será essencial um processo de educação sobre ciência da sustentabilidade, capaz de discutir e aceitar modos e, em particular, normativos societais e ambientais e necessária coresponsabilização e ação pelos equilíbrios e consensos necessários para a sustentabilidade. Tais orientações educativas serão potenciais elementos para produzir a transformação. O conhecimento e caminho para a sustentabilidade são ambos desafios individuais, mas também coletivos, académicos e políticos num processo complexo, mas compreensivelmente necessário.

Referências:

O presente texto é uma parte do texto original de: Dias Sardinha, I. A Valorização das Ciências Sociais e Humanas e o seu Vínculo com a Ciência da Sustentabilidade. 2018. In Utopia, Anarquia e Sociedade – Escritos em Homenagem a José Maria Carvalho Ferreira, SOCIUS-CSG, ISEG, Universidade de Lisboa, Almedina. Coordenadores: Rita Raposo, Maria Isabel Mendes de Almeida, Rafael Marques, Helena Mateus Jerónimo, Idalina Dias Sardinha, José Carlos Lopes, Manuel Coelho, Fundação Económicas, II serie, nº 30, pp. 833-844. (ISBN 978-972-40-7324-8)
https://www.almedina.net/utopia-anarquia-e-sociedade-escritos-em-homenagem-a-jos-maria-carvalho-ferreira-1563804226.html

∙ Clark WC and Dickson NM. 2003. Sustainability science: The emerging research program, John F. Kennedy School of Government, Harvard University, Cambridge, 100(14): 8059–8061.

∙ Jerneck A, Olsson L, Ness B, Anderberg S, Baier M, Clark E, Hickler T, Hornborg A, Kronsell A, Lo¨vbrand E, Persson J. 2011. Structuring sustainability science. Sustainability Science 6:69–82.

∙ Kates RW, Clark WC, Corell R, Hall JM, Jaeger CC, Lowe I, McCarthy JJ, Schellnhuber HJ, Bolin B, Dickson NM, Faucheux S, Gallopin GC, Grübler A, Huntley B, Jäger J, Jodha NS, Kasperson RE, Mabogunje A, Matson P, Mooney H, Moore III B, O’Riordan T, Svedin U. 2001. Sustainability Science, American Association for the Advancement of Science, Science, New Series, 292(5517): 641-642.

∙ Lang DJ, Wiek A, Bergmann M, Stauffacher M, Martens P, Moll P, Swilling M, Thomas CJ, 2012. Transdisciplinary research in sustainability science—practice, principles, and challenges. Sustainability Science 7(Suppl).

∙ Loorbach D, 2010. Transition management for sustainable development: a prescriptive, complexity-based governance framework, Governance 23:161–183.

∙ Matson P, 2009. The sustainability transition. Issues in Science and Technology 25(4):39–42.

∙ Miller TR, Wiek A, Sarewitz D, Robinson J, Olsson L, Kriebel D, Loorbach D. 2014. The future of sustainability science: a solutions-oriented research agenda, Sustainability Science, Vol 9/2, pp 239-246

∙ Ostrom E, Janssen MA, Anderies JM, 2007. Going beyond panaceas. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA 104(39):15176–15178.

∙ Scholz RW, 2011. Environmental literacy in science and society: from knowledge to decisions. Cambridge University Press, Cambridge, UK.

∙ Schultz J, Brand F, Kopfmueller J, Ott K, 2008. Building a ‘theory of sustainable development’: two salient conceptions within the German discourse. International Journal of Environment and Sustainable Development 7:465–482.

∙ Spangenberg JH, 2011. Sustainability science: a review, an analysis and some empirical lessons

∙ Strigl AW, 2003. Science, research, knowledge and capacity building. Environment, Development and Sustainability 5(1-2):255-273.