1 para 116 000 000. Esta é a probabilidade de um indivíduo acertar no Euromilhões. Quantos de nós já não sonharam com tudo o que fariam caso fossem o abençoado vencedor?
Para muitos, a primeira decisão seria despedir-se do seu emprego diário seguido potencialmente da compra de uma ou várias casas para a toda sua família, carros, artigos luxuosos e provavelmente finalizar a semana com uma gigantesca festa para celebrar o nosso dia de sorte. Em qualquer caso, o sentimento geral seria de que a nossa vida mudou e que estaria para sempre assegurada. Poucos de nós – talvez até nenhum – optaria por manter o seu emprego, investir o dinheiro de forma segura e viver o resto da nossa vida com pouco mais de que os juros oriundos do nosso investimento. Pois bem, esta é a história da Noruega – O Trilionário que não mudou de vida.
A Noruega é um país localizado na península escandinava com pouco mais de 5 milhões de habitantes e disperso por mais de 230 mil ilhas. É mundialmente conhecido pelas suas paisagens de fiordes e auroras boreais, Jogos Olímpicos de Inverno, pelo Grito de Munch e pela sua rica história descendente dos Vikings. É também reconhecida por todo o mundo como o protótipo de uma economia mista social-capitalista feita de forma correta.
Alia uma economia extremamente robusta – um PIB per capita de 64 214.52€, de acordo com dados do Banco Mundial para 2019, correspondente à 4º posição no ranking mundial, uma taxa de desemprego de apenas 5% mesmo após o impacto da crise pandémica e uma força de trabalho altamente qualificada com cerca de 42% da força laboral com educação universitária – a um desenvolvimento social como muito poucos: 1º lugar no ranking mundial de IDH, uma esperança média de vida de 82,76 anos e 5º lugar no ranking mundial do Índice de Felicidade – notável para um país onde não há sol mais de metade do ano.
É também um país onde encontramos uma distinta igualdade socioeconómica. Em média, após impostos, um indivíduo pertencente aos 20% mais pobre da população recebe apenas 4 vezes menos que um indivíduo pertencente aos 20% mais ricos. Isto não soa incrivelmente justo, mas quando comparamos com a média dos países da OCDE onde esta diferença é superior a 10 vezes, entendemos melhor a reduzida disparidade de rendimentos reais nesta sociedade. A economia norueguesa possui também medidas de proteção laboral extremamente robustas, o que significa que problemas sociais como trabalho precário ou necessidade de um 2º emprego são casos muito raros. Apenas 3% da força laboral norueguesa trabalha semanas com mais de 50h sendo que este valor é de 11% na OCDE e 33% nos EUA.
Levanta-se então a questão: Como é que uma economia que nos anos 60 desenvolvia fundamentalmente uma atividade piscatória e que contabilizava um PIB per capita ao nível de nações como a Nigéria e o Bangladesh – apesar da qualidade de vida se assemelhar mais a países europeus como Grécia e Espanha – é agora uma das principais potências económicas do mundo?
Tudo mudou em 1959, quando a descoberta de gás natural na costa de Groningen nos Países Baixos levou à crença generalizada de que haveria um grande potencial de exploração de recursos naturais – nomeadamente petróleo – na Placa Continental do Mar do Norte. Em maio de 1963, o Reino da Noruega declarou e exerceu direitos soberanos sobre uma enorme área desta região marítima, numa jogada que, à época, dificilmente não teria sido condenada não tivesse sido realizada por um membro da NATO. Isto significou que todos os recursos encontrados nesta região pertenceriam ao Rei – sendo que na prática, ao governo – e, como tal, apenas este poderia atribuir licenças de exploração e produção a terceiros. Ao longo dos anos seguintes centenas de licenças foram emitidas a empresas privadas na corrida ao petróleo no Mar Negro. A aventura petrolífera norueguesa apenas se iniciou realmente em 1969, quando o navio Ocean Viking da empresa Philips Petroleum encontrou pela primeira vez petróleo num furo realizado no atual no campo de Ekofisk, iniciando-se a produção em 1971. Este é ainda hoje um dos mais produtivos campos de exploração petrolífera do mundo. Daí em diante, inúmeras descobertas foram feitas ao longo da Placa, sendo este trabalho inicial desenvolvido maioritariamente por empresas privadas, com participação da Statoil, empresa pública fundada em 1972. Durante a década de 70, a Noruega produziu mais petróleo per capita do que qualquer outro país do mundo e ainda hoje só é superada pelo Kuwait, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita, produzindo cerca de 2 003 747,53 barris de petróleo por dia.
A 1 de Janeiro de 1985, a participação do governo norueguês foi completamente reorganizada, passando este a ser o principal responsável pela exploração dos campos de óleo e gás natural da Placa Continental do Mar do Norte. A Statoil foi parcialmente privatizada em 2001, ficando cotada na bolsa de Oslo e Nova Iorque, mantendo-se o governo norueguês o acionista maioritário com 81,7% das ações. Em 2007 fundiu-se com a principal produtora nacional de energia hidroelétrica – Norsk Hydro – passando a ser StateOilHydro, alterando novamente o seu nome em 2018 para Equinor. O governo norueguês é ainda o principal acionista da empresa..
Agora, isto poderá soar a mais uma história de um país que enriqueceu por conta da exploração dos seus recursos naturais e que levou a um aumento drástico na sua despesa pública com novas infraestruturas e cidades inovadoras ou à redução dos impostos – algo que certamente teria sido do agrado imediato da população – mas não é o caso. O boom económico causado pela exploração do petróleo fez com que o PIB per capita da Noruega mais que quintuplicasse em cerca de 30 anos. No entanto, como a exploração foi feita pela empresa pública Statoil, estes rendimentos extra não foram maioritariamente encher os bolsos de entidades privadas, mas sim do governo – e o governo foi extremamente cauteloso a gerir esta nova riqueza.
O governo norueguês entendeu que esta riqueza não seria eterna e que os seus cidadãos não ficariam satisfeitos se após umas décadas de prosperidade tivessem de regressar a uma economia predominantemente à base de pesca. O governo utilizou os lucros desta exploração para criar um fundo monetário público – Global Pension Fund – que é neste momento o maior fundo soberano no mundo, superando em valor o investimento direto estrangeiro chinês. A ideia por trás disto é que a riqueza adquirida através da exploração energética pertence aos cidadãos da Noruega e é neles que deve ser utilizada. O seu principal objetivo é garantir uma gestão responsável e de longo prazo das receitas dos recursos de petróleo e gás da Noruega, para que esta riqueza beneficie as gerações atuais e futuras. Outro dos grandes objetivos macroeconómicos do fundo é permitir a estabilização da economia norueguesa, quer em caso de sobreaquecimento quer em caso de necessidade de políticas contracionistas.
O Global Pension Fund é neste momento composto por investimentos realizados em 9123 empresas, dispersos por mais de 72 países. O seu valor atual é de 10 913 768 061 ,832 NOK, equivalente a mais de 1 trilião de euros. É ainda de realçar que, apesar da base financeira que possibilitou a existência deste fundo surgir de uma indústria altamente poluente e, por muitos, condenável, os dirigentes do GPF comprometeram-se a realizar apenas investimentos em indústrias que consideram sustentáveis, utilizando como princípios orientadores os ODS da Nações Unidas. O parlamento norueguês decretou ainda que o fundo não poderá investir em empresas que contribuam para violações de normas éticas fundamentais, fabriquem certos tipos de armas, baseiem suas operações em carvão ou produzam tabaco. Foi também criado um Conselho de Ética independente que avalia e emite pareceres relativamente aos investimentos realizados.
Todos os serviços essenciais na economia norueguesa são financiados através dos rendimentos obtidos pelos investimentos do fundo e o investimento público norueguês está limitado legalmente a um máximo de 3% ao ano do valor do fundo. Note-se ainda que, apesar de uma das principais falhas apontadas à economia norueguesa ser o elevado custo de vida – é o 7º país com maior custo de vida no mundo – nenhum norueguês alguma vez se terá de preocupar com encargos de saúde elevados, com endividamento para educação ou com falta de alojamento. O sentimento geral é de que este é um preço justo em troca da sensação constante de segurança em toda a população.
É inegável esconder que a Noruega foi abençoada com os recursos naturais que descobriram no seu território – venceram a lotaria geográfica – mas a forma como geriram essa sorte é louvável e a visão a longo prazo que tiveram – e ainda têm – permitiu que esta fortuna continue a ser utilizada de forma a assegurar a qualidade de vida de todos os seus cidadãos. São o protótipo do talvez utópico capitalismo consciente e, apesar de ser extremamente difícil replicar este feito em países que não tenham sido beijados da mesma forma pela sorte, é um exemplo de como outras economias à base de exploração de recursos energéticos poderiam ter aproveitado os seus recursos de forma diferente e com o bem de toda a população em mente.