Perceções, Mediações e Convenções

Luís F. Costa

Professor Associado Com Agregação na Lisbon School of Economics & Management (ISEG)

21 de abril de 2020

A pandemia Covid-19 que vivemos é um acontecimento único na história. A sua singularidade não advém da especial letalidade ou infecciosidade da doença, mas do facto de vivermos hoje em sociedades com muita impaciência, uma grande intolerância perante a incerteza e com meios de comunicação extremamente velozes e acessíveis.

Este acesso a uma quantidade enorme de informação, aliada ao culto do amadorismo, aumenta tanto a nossa sensação de incerteza como a pressão para termos “opinião” sobre tudo e mais alguma coisa.

Mas o que me leva a escrever estas linhas é o facto de a informação quantitativa poder afetar a nossa perceção quando não temos cuidado com a medição e quando usamos cegamente convenções. E este não é um problema exclusivo da epidemiologia, já que todos os dias o encontramos em dados económicos e empresariais.

Vejamos então o exemplo que me motivou a escrever este texto. Trata-se de um gráfico como o que apresento abaixo e que circulou nas redes sociais no final de março.

"O que me leva a escrever estas linhas é o facto de a informação quantitativa poder afetar a nossa perceção quando não temos cuidado com a medição e quando usamos cegamente convenções."

"A escolha dos benchmarks com que nos comparamos é importante. Se eu quiser parecer alto, é melhor comparar-me com pessoas da Bolívia do que da Islândia. "

Na altura, tinham decorrido duas semanas após Portugal atingir os 100 casos confirmados de Covid-19, apresentando-se em “primeiro” lugar com 500 casos por milhão de habitantes, mais do dobro de Espanha, em segundo, e com os restantes países na mesma ordem que acima se observa. Não vou comentar a forma como estes números são medidos nestes países, o efeito do nível de testagem ou a fiabilidade dos dados e o que digo em seguida também se aplica a outras variáveis como o número de óbitos ou de internados em unidades de cuidados intensivos. Muito menos comentarei as opiniões de pessoas tão ou mais amadoras do que eu.

Problema 1: cherry picking

Olhar para os países do gráfico, lembra-me da tradicional anedota portuguesa do séc. XX: “Um português, um francês e um alemão…” Porquê estes países? O mais pequeno deles tem o quádruplo da população portuguesa e o maior tem 135 “portugais” lá dentro. Porque não Bélgica, Suécia, Luxemburgo ou Islândia? A escolha dos benchmarks com que nos comparamos é importante. Se eu quiser parecer alto, é melhor comparar-me com pessoas da Bolívia do que da Islândia. Encontrei então 51 países que tinham pelo menos 1000 casos confirmados até 12 de abril e para os quais não necessitava de fazer projeções a mais do que 7 dias para chegar aos tais 27 após o centésimo caso confirmado (aqueles com um asterisco na figura abaixo).

Sem este cherry picking, termo da língua inglesa para a escolha seletiva acima mencionada, deixamos de ver um “problema” português ou ibérico e passamos a ver um da Europa Ocidental.

Um olho mais treinado verificará que existe aqui uma correlação negativa entre estes valores e a dimensão do país. Ao 27º dia a correlação é de -0,5, mas ela era de -0,8 ao 15º dia. Isto acontece por acaso? Não. Transformámos o número de casos numa grandeza relativa, o que não está errado, mas mantivemos a convenção do número absoluto 100 para contar o tempo.

Problema 2: escolha das convenções

Por que razão adotámos 100 casos confirmados de Covid-19 para começar a contar o tempo e depois avaliamos o número de casos por milhão de habitantes? A variável é relativizada, mas a convenção não? Vamos então corrigir este problema e contar o tempo quando um país atinge 1 caso confirmado por 100 mil habitantes. Para Portugal nada muda, já que a nova convenção nos dá agora 103 casos para estabelecer o dia zero. Mas para o Luxemburgo temos 6 casos e para a China 13 860. O que muda 27 dias depois?

"Sem este cherry picking, termo da língua inglesa para a escolha seletiva acima mencionada, deixamos de ver um “problema” português ou ibérico e passamos a ver um da Europa Ocidental. "

"Os números estão lá e não deixam de existir, mas a perceção que deles temos e a interpretação sobre a melhor forma de agir são diferentes. "

"Então, como pode um estudante de 18 ou 24 anos formar as suas opiniões? Pensando pela sua cabeça e adquirindo a “imunidade” que só a reflexão demorada nos pode dar. Deixo aqui duas regras simples "

Muita coisa. A penalização dos países pequenos desaparece, já que a correlação entre os casos por milhão de habitantes e a população do país passou a ser praticamente zero (-0,1).

Este tipo de problema causado pela escolha das convenções afeta as nossas áreas de estudo quando usamos bases de dados internacionais que apenas registam empresas acima de determinada dimensão ou quando temos de escolher um conceito de linha de pobreza ou quando misturamos produtividades por trabalhador ou por hora trabalhada. Os números estão lá e não deixam de existir, mas a perceção que deles temos e a interpretação sobre a melhor forma de agir são diferentes.

Em França é conhecido o fenómeno do número exagerado de empresas com 49 empregados: são mais do dobro das que têm 50 empregados. Porque é que isto acontece? Porque uma empresa com 50 ou mais empregados é legalmente obrigada partilhar lucros e decisões de gestão com os trabalhadores. Resultado: é preferível deter duas empresas de 49 trabalhadores a uma de 98. As convenções não são inócuas.

Problema 3: amadores e profissionais

As contas acima apresentadas foram feitas por um amador. Não sou epidemiologista, mas tenho acesso a fontes de informação públicas (www.worldometers.info/coronavirus/), ao Excel e a matemática básica. Por isso, tentei não fazer apreciações normativas sobre os números nos gráficos: não usei adjetivos para avaliar Portugal em relação a outros países nem falei de governos, povos ou sistemas de saúde.

Mas a verdade é que todos os dias somos bombardeados com informação tratada por amadores que juntam a contas básicas a sua opinião. Temos cantores a comentar futebol profissional, cabeleireiras imitadoras da Billie Eilish em concursos de talentos, empresários de “sucesso” cá no bairro que nos dizem como deveria ser gerida uma das 200 melhores universidades do mundo (sim, a nossa) e toda a gente que fala sobre economia, finanças e gestão com muita convicção e pouco conhecimento. E já não falo em fake news…

Então, como pode um estudante de 18 ou 24 anos formar as suas opiniões? Pensando pela sua cabeça e adquirindo a “imunidade” que só a reflexão demorada nos pode dar. Deixo aqui duas regras simples: (i) se acabei de ver informação que me deixa indignado, é melhor pensar 24 horas sobre o assunto antes de brindar o mundo com a minha opinião; (ii) se um “especialista” tem tanto tempo para opinar nas redes sociais ou nos média clássicos, é porque não faz grande trabalho na sua área.