Quem já me teve ou tem como professor, sabe que é impossível dissociar as minhas aulas do conhecido feiticeiro criado por J. K. Rowling – Harry Potter. A razão é extraordinariamente simples. No terceiro volume da série, O Prisioneiro de Azkaban, a Hermione utiliza um time turner para voltar atrás no tempo e poder assistir a todas as aulas sobrepostas. Uma das aulas, Divination, é particularmente útil para nós, tanto em Gestão como em Finanças. De facto, dado que sou da área científica de Finanças do departamento de Gestão, acho estas aulas particularmente pertinentes. Parece brincadeira e, obviamente, é, mas também é verdade que não anda assim tão longe da verdade.
A verdade é que boa parte do trabalho que se faz em finanças é sobre o futuro. A verdade é que tanto a nível da empresa como a nível dos mercados são tomadas decisões com base em expectativas sobre o futuro. E é este o ponto de encontro com Divination. Ambos fazem profecias sobre o futuro.
Apesar da semelhança no resultado, o caminho é profundamente diferente. Numa utilizam-se modelos e técnicas científicas para produzir uma educated guess. Noutra, utilizam-se meios menos ortodoxos para se obterem o mesmo resultado. Em certas ocasiões pergunto-me qual corresponde a Finanças e a Divination…mas espero que em Finanças sejam utilizadas as técnicas mais robustas para produzir as melhores educated guesses sobre o que irá acontecer no futuro.
Não obstante toda a robustez e rigor das expectativas formadas, os tempos atuais mostram que a formação de expectativas se move em areias bastante movediças. Quando os orçamentos e planos de investimento para 2020 foram desenhados, ninguém poderia antecipar o caos em que o SARS-COV-2 iria lançar o mundo. Mas significa isto que “adivinhar o futuro” é um esforço perdido e inglório? Não! Antes pelo contrário.
Como o nosso Professor Vasconcellos e Sá escreveu no seu livro A Empresa Negligenciada, em cada momento existem duas empresas na mesma empresa. A empresa de hoje e a empresa de amanhã. Infelizmente, os gestores e todo o pessoal andam demasiado ocupados com a empresa de hoje, procurando resolver problemas e apagando fogos. Consequentemente, a empresa do futuro é negligenciada. Poucos ou nenhuns na maioria das organizações pensam sobre o que ela deverá ser daí a 5 anos. E nunca tanto como hoje é importante olhar para o que se passa em redor da empresa, quais as trends e megatrends e quais as ameaças que espreitam escondidas na sombra. É preciso monitorizar o que se passa no planeta em todas as áreas, com particular incidência nas variáveis e fatores críticos que afetam a organização.
Neste domínio, a Inteligência Artificial (IA), nomeadamente o Deep Learning, assume um papel cada vez mais importante, tanto pela sua capacidade de processar quantidades abissais de informação (big data) e de encontrar correlações que escapam à limitada e enviesada capacidade humana de processar informação. O que faz a diferença hoje não é o domínio de hard skills ou até mesmo de soft skills, embora sejam mais críticas. O que realmente faz a diferença é o domínio da informação e o domínio da capacidade de interpretar a informação.
Voltemos a olhar para a atual situação pandémica. Que países estão a lidar melhor com a atual crise? Entre outros, Alemanha, Finlândia, Nova Zelândia e Islândia são considerados exemplos das melhores práticas. Todos estes países reagiram particularmente cedo à ameaça, que foi corretamente identificada e avaliada. Mas de todos eles, um fez algo totalmente óbvio e que, no entanto, escapou à esmagadora maioria dos líderes políticos, tomaram medidas um mês antes do primeiro caso surgir no país. Começam ainda em janeiro a controlo a saúde de todas as pessoas que entraram no país, dando imediata assistência médica a quem precisava dela. No dia 29 de fevereiro tiveram o primeiro caso. A 5 de abril tiveram o número máximo de casos ativos (1096) e a 29 do 4 tinham 117 casos ativos.
O que podem as organizações aprender com a Islândia? Que a rapidez de reação é crucial na resposta às crises. Rapidez que apenas é possível atingir quando há efetivo controlo de gestão que permita monitorizar as variáveis críticas e, consequentemente, implementar planos de contingência que devem estar previamente pensados e desenhados. Rapidez que apenas é possível atingir quando alguém pensa na empresa do futuro e olha criticamente para a informação resultante do controlo de gestão. Rapidez que apenas é atingida quando aqueles que pensam a empresa do futuro vislumbram as ameaças mais recônditas e conseguem orquestrar planos de contingência. Rapidez que apenas é atingida quando se dota as organizações das competências necessárias para lidar com as contingências. Rapidez que apenas é atingida quando há capacidade de liderança e de tomada de decisão.
A referência que fiz ao controlo de gestão poderá parecer estranho, uma vez que esta disciplina controla o passado, não fazendo parte do conjunto de conhecimentos que fazem parte de qualquer curso decente em adivinhação…finanças quero eu dizer. Mas a verdade é que não tem nada de estranho. A resposta para este puzzle está num clássico artigo publicado na Harvard Business Review em 1995 (edição de Março/Abril) por Robert Simons, Control in an Age of Empowerment. Simons defende que a estratégia deve ser controlada em quatro níveis, sendo que um deles trata das incertezas estratégicas, fonte de todas as ameaças e oportunidades que a empresa enfrenta. Também o controlo de gestão deve olhar para o futuro.
Temos hoje, como nunca, consciência que a nossa capacidade de antecipar o futuro e criar expetativas é profundamente frágil, mas crucial para a sobrevivência das organizações. É por isso, tempo de monitorizar tudo e obter toda a informação disponível, utilizando todo o potencial que a tecnologia e a IA nos dão, mas sem ultrapassar linhas vermelhas. Só assim podemos utilizar as ferramentas que aprendemos em finanças e nas outras áreas da gestão de forma efetiva e sem medo de tomar decisões tempestivas.
Vasconcellos e Sá, J. (2002) A Empresa Negligenciada, Verbo
Simmons, R. (1995) Control in an Age of Empowerment, Harvard Business Review, March-April